segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Mulheres com M maiúsculo


Ontem assisti a duas entrevistas com mulheres fortes que me surpreenderam positivamente. A primeira, no Fantástico, com a polêmica Lea T, a transexual filha do ex-jogador Toninho Cerezo, que ganhou o mundo após virar modelo internacional. A segunda, com Bruna Surfistinha (ou Raquel Pacheco), conduzida pela sempre competente Marília Gabriela.

Demonstrando uma coerência tremenda da sua condição, de como está inserida na sociedade e do quanto ainda terá de batalhar para se firmar como mulher– para si e para os outros- , Lea T falou sem constrangimentos da época em que ainda era Leandro, de como foi a aceitação da família, da descoberta de que era uma mulher presa no corpo masculino e das dificuldades de relacionar-se desde então.

Deixou claras a insatisfação e a dificuldade que passa por se assumir transexual em uma sociedade tão preconceituosa. Falou de que não consegue se relacionar com homens por conta disso, que recorre à terapia para se aceitar e que penou muito para conseguir vencer profissionalmente em um mundo onde a transex ou é prostituta ou não tem chance alguma no mercado de trabalho.

Me chamou a atenção seu olhar triste, sem brilho, e o semblante sério de quem deu o primeiro passo, mas ainda não está tão pronto para seguir adiante. Apesar de segura e coerente nas respostas, Lea T me pareceu uma menina acuada diante da vida, como se vivesse ainda pela metade, apesar do atual sucesso profissional e da decisão de levar sua bandeira adiante.

Já Raquel, que há oito anos abandonou a profissão e a vida de Bruna Surfistinha para casar e se dedicar aos livros autobiográficos e eróticos, me surpreendeu pela segurança nas respostas. Com apenas 26 anos, demonstra uma maturidade sem igual ao lembrar dos três anos como garota de programa e projetar o futuro próximo, no qual se vê assumindo as funções de mãe e psicóloga, nessa ordem.

Fala com naturalidade que a rebeldia juvenil, somada ao gosto pela prática do sexo, a motivou a sair de casa aos 17 anos e partir para a “vida fácil”. Conta que chegava a ganhar R$ 500 por dia de trabalho e que graças à profissão conseguiu manter o padrão de vida que tinha como menina de classe média. Com uma certa mágoa, conta que não fala com a família- irmãs e pais adotivos – desde que revelou sua antiga profissão, que sonha em retomar o contato com eles e que conseguiu superar a drogadição e o estigma da rejeição, cedendo ao amor de um cliente, hoje seu marido.

Mostrando desenvoltura, inteligência e boa educação, as respostas de Raquel demonstram que os três anos em que dedicou-se à prostituição não foram penosos, como muitos pensam. Ela sabia que a profissão só seria um recurso a ser utilizado por período determinado e se orgulha de ter conquistado e experimentado tudo o que quis naquele tempo.

Aproveitando a proximidade do lançamento do filme que contará sua história, tendo Débora Secco como protagonista, Raquel desmistificou a imagem que fazemos da garota de programa que é vítima da falta de melhores condições de vida ou que recorreu a isso por não ter outras oportunidades. Apesar de nova, ela sabia muito bem o que estava fazendo e o que fez por três anos, e não se arrepende!

Valente e fiel a seus princípios, Bruna Surfistinha só manteve o clichê no final da história, ao se entregar ao happy end desejado por dez entre dez meninas que se prostituem, largando a profissão e se casando com um antigo cliente. Duas excelentes entrevistas com mulheres interessantíssimas e corajosas em suas escolhas! Boas para fazer pensar nos problemas que, vez ou outra, nos paralisam, sem tamanha necessidade!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Sem despedidas


Passando as mãos nos cabelos grisalhos dela, diante de toda a fragilidade que uma convalescença impõe a qualquer um - ainda mais idoso-, senti como se tivesse sido levada a um túnel do tempo, onde lembranças, imagens e acontecimentos se misturavam muito rapidamente.

A primeira memória que veio foi dela me fazendo um carinho na cabeça e depois beijando delicadamente cada um dos meus olhos, “para ficar mimosa”, como adorava repetir. Vieram também as inúmeras vezes em que coçava minhas costas antes de eu dormir, me colocava em seu colo durante a viagem para a praia para, juntas, observarmos as nuvens e nos divertirmos com o formato que víamos em cada uma delas.

Não pude esquecer dos deliciosos lanches da tarde que oferecia aos netos, dos bolos de chocolate, as rosquinhas quentinhas, dos chocolates e biscoitos que escondia em casa somente para nos receber.

Sempre alinhada, cheirosa, cabelo e unhas feitas, foi uma avó moderna, rejeitava os vestidos que as senhoras de sua idade costumavam usar, preferia jeans. Também rechaçava os cabelos naquele tom lilás-vovó e os mantinham sempre castanhos claros e curtos.

De seus passatempos prediletos, além de entreter os netos, as palavras-cruzadas e a televisão. Volta e meia me pedia ajuda pra descobrir uma palavra e, devido a falhas na alfabetização, perguntava se o termo se escrevia com “b de bolinha” ou “p de perninha”. Se preparava para ver o programa da Hebe, religiosamente, e adorava comenta-lo conosco no dia seguinte.

Quando nos visitava, vez que outra amassava uma nota de dinheiro na mão e metia sorrateiramente em um dos meus bolsos, como um regalo. Tirava da própria mesada pra presentear os netos. Logo que fiquei adulta, me dizia para sempre sair de casa arrumada e de batom, pois poderia encontrar meu príncipe encantado até na padaria. Também insistia para que usasse calcinha e sutiã do mesmo conjunto diariamente, por precaução.

Quando sofri um acidente há quatro anos e fiquei meses hospitalizada, levaram-na para me visitar, mesmo senil e já na cadeira de rodas. Confesso que aquele momento nunca sairá da minha memória. Sei que sou privilegiada de conviver há 35 anos com minha avó, mas vê-la como está - entrando e saindo de hospitais- e esteve nos últimos cinco anos tem sido muito difícil. A necessidade de colocar uma válvula no cérebro para drenagem, somada a algumas quedas da idade e ao Alzheimer repentino fez com minha querida vó Tereza ficasse irreconhecível.

Há algum tempo não fala nem anda, mas nos reconhece e demonstra o mesmo afeto de sempre através dos olhos e do sorriso. Confesso que os primeiros anos foram muito difíceis, custei a aceitar vê-la daquele jeito e minha primeira reação foi de afastamento. Aos poucos, as coisas foram se ajeitando e aprendi a conviver com aquela situação, voltando a visitá-la rotineiramente.

Dizem que avós são pais com açúcar, mas os meus são bem mais do que isso. Meus avós eu via diariamente desde bebê. Aguardava ansiosa por suas visitas à tarde, os almoços de final de semana, as temporadas em que ficávamos juntos na praia.

Quando comecei a trabalhar, uma das coisas que mais sentia era a falta deles durante a semana. Quando me mudei para o Interior então, sofria com a saudade e ligava todas as noites. Sempre foram muito presentes na minha vida, me dando colo, carinho, alento.

Pessoas assim, doces como minha vó Tereza, não mereciam sofrer. Por que não podem simplesmente envelhecer, dormir e um dia não mais acordar, sem a necessidade de sondas, injeções, máquinas e remédios? Cada ida minha ao hospital tem sido como uma despedida. Olho pra ela, tenho as lembranças felizes, faço um carinho e vou embora com o coração apertado. No dia seguinte, tudo de novo.

Ontem, minha avó piorou. O olhar está prostrado, teve de receber oxigênio, está inchada e com os rins trabalhando pouco. Não sorriu quando entrei, não respondeu aos meus carinhos, tampouco mexeu os olhos como se quisesse dizer algo. Demorei um pouco mais acarinhando seus cabelos antes de sair, acho que apesar de tudo, ela retribuiu da forma que pôde, e fechou os olhos também um pouco mais demoradamente enquanto minha mão passeava por sua testa.

A partir de hoje, quando for visitá-la novamente no hospital, decidi que não vou mais me despedir. Sei que ela estará comigo sempre e que bastará fechar os olhos para tê-la forte ao meu lado de novo.