sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Sem despedidas


Passando as mãos nos cabelos grisalhos dela, diante de toda a fragilidade que uma convalescença impõe a qualquer um - ainda mais idoso-, senti como se tivesse sido levada a um túnel do tempo, onde lembranças, imagens e acontecimentos se misturavam muito rapidamente.

A primeira memória que veio foi dela me fazendo um carinho na cabeça e depois beijando delicadamente cada um dos meus olhos, “para ficar mimosa”, como adorava repetir. Vieram também as inúmeras vezes em que coçava minhas costas antes de eu dormir, me colocava em seu colo durante a viagem para a praia para, juntas, observarmos as nuvens e nos divertirmos com o formato que víamos em cada uma delas.

Não pude esquecer dos deliciosos lanches da tarde que oferecia aos netos, dos bolos de chocolate, as rosquinhas quentinhas, dos chocolates e biscoitos que escondia em casa somente para nos receber.

Sempre alinhada, cheirosa, cabelo e unhas feitas, foi uma avó moderna, rejeitava os vestidos que as senhoras de sua idade costumavam usar, preferia jeans. Também rechaçava os cabelos naquele tom lilás-vovó e os mantinham sempre castanhos claros e curtos.

De seus passatempos prediletos, além de entreter os netos, as palavras-cruzadas e a televisão. Volta e meia me pedia ajuda pra descobrir uma palavra e, devido a falhas na alfabetização, perguntava se o termo se escrevia com “b de bolinha” ou “p de perninha”. Se preparava para ver o programa da Hebe, religiosamente, e adorava comenta-lo conosco no dia seguinte.

Quando nos visitava, vez que outra amassava uma nota de dinheiro na mão e metia sorrateiramente em um dos meus bolsos, como um regalo. Tirava da própria mesada pra presentear os netos. Logo que fiquei adulta, me dizia para sempre sair de casa arrumada e de batom, pois poderia encontrar meu príncipe encantado até na padaria. Também insistia para que usasse calcinha e sutiã do mesmo conjunto diariamente, por precaução.

Quando sofri um acidente há quatro anos e fiquei meses hospitalizada, levaram-na para me visitar, mesmo senil e já na cadeira de rodas. Confesso que aquele momento nunca sairá da minha memória. Sei que sou privilegiada de conviver há 35 anos com minha avó, mas vê-la como está - entrando e saindo de hospitais- e esteve nos últimos cinco anos tem sido muito difícil. A necessidade de colocar uma válvula no cérebro para drenagem, somada a algumas quedas da idade e ao Alzheimer repentino fez com minha querida vó Tereza ficasse irreconhecível.

Há algum tempo não fala nem anda, mas nos reconhece e demonstra o mesmo afeto de sempre através dos olhos e do sorriso. Confesso que os primeiros anos foram muito difíceis, custei a aceitar vê-la daquele jeito e minha primeira reação foi de afastamento. Aos poucos, as coisas foram se ajeitando e aprendi a conviver com aquela situação, voltando a visitá-la rotineiramente.

Dizem que avós são pais com açúcar, mas os meus são bem mais do que isso. Meus avós eu via diariamente desde bebê. Aguardava ansiosa por suas visitas à tarde, os almoços de final de semana, as temporadas em que ficávamos juntos na praia.

Quando comecei a trabalhar, uma das coisas que mais sentia era a falta deles durante a semana. Quando me mudei para o Interior então, sofria com a saudade e ligava todas as noites. Sempre foram muito presentes na minha vida, me dando colo, carinho, alento.

Pessoas assim, doces como minha vó Tereza, não mereciam sofrer. Por que não podem simplesmente envelhecer, dormir e um dia não mais acordar, sem a necessidade de sondas, injeções, máquinas e remédios? Cada ida minha ao hospital tem sido como uma despedida. Olho pra ela, tenho as lembranças felizes, faço um carinho e vou embora com o coração apertado. No dia seguinte, tudo de novo.

Ontem, minha avó piorou. O olhar está prostrado, teve de receber oxigênio, está inchada e com os rins trabalhando pouco. Não sorriu quando entrei, não respondeu aos meus carinhos, tampouco mexeu os olhos como se quisesse dizer algo. Demorei um pouco mais acarinhando seus cabelos antes de sair, acho que apesar de tudo, ela retribuiu da forma que pôde, e fechou os olhos também um pouco mais demoradamente enquanto minha mão passeava por sua testa.

A partir de hoje, quando for visitá-la novamente no hospital, decidi que não vou mais me despedir. Sei que ela estará comigo sempre e que bastará fechar os olhos para tê-la forte ao meu lado de novo.

8 comentários:

Alvaro Neto disse...

Uma das coisas mais preciosas que está se perdendo neste mundo atribulado é o respeito e o carinho pelos nossos ancestrais, que bom que isso está vivo no teu coração que é tão luminoso. Te amo demais!

3 x Trinta - Solteira, Casada, Divorciada disse...

Coisa fofa, Fernanda. A minha avó também me dava dinheiro assim, discretamente. Com as notas enroladinhas em papel, engraçado.

Seu texto me fez lembrar dela, obrigada.

Beijão,

Bela - A Divorciada

Afrodite disse...

Só posso te desejar forças,pois sei o quanto é triste ver um dos nossos avós partir e nada poder fazer!
Beijo!

Márcia de Albuquerque Alves disse...

Oi Fernanda! Tem momentos que a gente busca palavras e não encontra né? Hoje estou assim, depois de te ler. Talvez o momento agora seja como diz Ana Jácomo "Senta apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o seu. Às vezes a gente nem precisa mesmo de palavras". Acredito que agora o que ela mais precisa é do calor do amor que você tem prá dá, sentir-se amada e acompanhada.
Entendo você minha amiga, plenamente, acredite! bjssss e força!

Suzana disse...

Nanda, vc me fez tb viajar no tempo. Pareço estar vendo a Tereza sempre linda, perfumada, ativa, amada. Estive no final do ano com ela - e nos seus olhos - me vi menina novamente. Tereza me reconheceu. E a tristeza de ve-la assim foi compensada pela paz que notei em seus olhos. Ela está feliz, tenha certeza.

Anônimo disse...

Fernanda, dizem que conselhos são inúteis. Eu discordo! Não te conheço. To numa fase ruim p/ ... e procurando ler coisas boas para tentar ficar bem. Pulando de blog em blog, parei aqui, não sei se pra ler o "sem despedidas" ou se pra te dizer o que meu deu vontade após ler o texto.
Bem, me deu saudades!! Fernanda, meus conselhos: abrace-a, beije-a quando for vê-la! Toque seu rosto! Deixe-a sentir que vc está ali pra ela, com ela, por ela! Cante uma música! Converse! O amor está nisso tudo e acredite, você pode não ver nas expressões dela, mas ela sente!! E não há nada que supere o amor!
Tereza deve estar feliz por te ter!
Um grande beijo
Thays

Magali Moraes disse...

Fernanda, que lindo o teu amor por ela. É muito difícil a gente aceitar que os avós e os pais envelhecem e sofrem com a passagem do tempo. Mas o jeito é ser forte e inverter os papéis. Tomara que a tua vozinha esteja melhor.
Beijo grande

Anônimo disse...

Eu estava procurando uma fotos de mãos sendo beijadas e encontrei este texto e li, lembrei de minha vó que já se foi e de minha mãe que se foi a um ano, chorei sem perceber, é assim mesmo,os idosos vão perdendo a saúde, vão enfraquecendo e se vão e não podemos fazer muito pois Deus nos chama assim que acaba nossa missão, mas dói demais.Fique pertinho de sua vó e se prepare para a despedida, ela se vai mas a essência fica com os amados filhos e netos, que Deus te proteja,Bianca.